Mário Filho celebrou a primeira vitória do Vasco em artigo com imagem de lance do Maracanazo
– Danilo perdeu para Julio Pérez, que entregou imediatamente na direção de Míguez. Míguez devolveu a Julio Pérez, que está lutando contra Jair, ainda dentro do campo uruguaio. Deu para Ghiggia. Devolveu a Julio Pérez, que dá em profundidade ao ponteiro direito. Corre Ghiggia! Aproxima-se do gol do Brasil e atira! Gol! Gol! Do Uruguai! Ghiggia! Segundo gol do Uruguai.
Quase 66 anos já se passaram, mas o tento que silenciou 200 mil pessoas ainda causa arrepios. O fantasma de 50 assombra gerações, mesmo aquelas que só o conhecem dos livros ou, as mais novas, de vídeos resgatados pela internet. É difícil imaginar o sentimento causado pelo gol que decretou a mais inesperada das derrotas menos de nove meses depois do Maracanazo. Especialmente entre os brasileiros mais próximos da história, aqueles que estavam em campo.
O desejo, porém, era de vingança. Coube ao Vasco, de Barbosa – sim, ele –, Augusto, Danilo, Friaça e Ademir, realizá-la. Em Montevidéu. Foi no dia 8 de abril de 1951, exatos 65 anos atrás, que os comandados do técnico Otto Glória recuperariam o prestígio do futebol brasileiro diante de seu algoz. O amistoso entre Peñarol e Vasco, no estádio Centenário, era o primeiro encontro entre brasileiros e uruguaios desde a final da Copa do Mundo de 1950, justamente entre as equipes que eram bases de suas seleções.
No gramado, 11 dos jogadores que duelaram no Maracanã. Barbosa de um lado, Ghiggia de outro. Friaça, que fez o primeiro gol em 16 de julho de 1950, assim como Schiaffino, que empatou aquela final, também se enfrentaram. O temido Obdúlio Varela, o homem que ergueu a taça que deveria ter ficado no Rio de Janeiro, esteve em campo.
– Quando o Brasil jogou contra o Uruguai na Copa de 1970 (semifinal, 3 a 1 para o Brasil), falaram em vingança de 50. Mas não vi assim. Honestamente: eu lavei minha alma um ano depois da nossa derrota na final da Copa, quando viajei para o Uruguai, pelo Vasco da Gama, para enfrentar o Peñarol – contou o goleiro Barbosa ao jornalista Geneton Moraes Neto em entrevista para o livro “Dossiê 50”.
– Eu disse ao Gigghia que eu também já calei o Uruguai, no estádio Centenário, em Montevidéu. Venci os uruguaios (do Peñarol) por 3 a 0 – completou o arqueiro brasileiro, que pelos anos que lhe restaram – ele morreu em 2000 – carregou a culpa do revés no primeiro Mundial disputado no Brasil.
Sabor do Maracanazo
Poucos uruguaios testemunharam a façanha de sua seleção no Maracanã – apenas aqueles que estavam no estádio, já que as transmissões televisivas era praticamente um sonho à época. O amistoso entre Vasco e Peñarol levava a Montevidéu uma amostra do que havia acontecido meses antes – com a promessa de um jogo de volta para a semana seguinte, novamente no estádio municipal do Rio.
Barbosa, Augusto, Danilo, Friaça e Ademir, titulares do Brasil na Copa do Mundo, titulares também do Vasco. No elenco cruz-maltino ainda estavam Alfredo, Eli e Maneca, reservas na equipe de Flávio Costa, vice-campeão do Mundo. Entre os celestes, Máspoli, Matías González, Obdúlio Varela, Ghiggia, Míguez e Schiaffino. Atração suficiente para encher o Centenário com 70 mil pessoas.
O Vasco chegou à capital uruguaia três dias antes do confronto. Os jogadores buscavam “a reabilitação do football brasileiro”, segundo o Jornal dos Sports, dirigido pelo jornalista Mário Filho, que anos depois emprestaria seu nome ao Maracanã.
– Vamos dispostos a uma grande vitória na certeza de que teremos pela frente uma das maiores expressões do football sul-americano – afirmou, diplomaticamente, o atacante Ademir.
– Acabou a era dos Ghiggias e dos outros. Estamos bem preparados e podemos ganhar do Peñarol em Montevidéu – disse o desafiador Barbosa.
O jogo
A véspera da partida ficou marcada por um episódio inusitado. Escolhido para apitar o amistoso, o árbitro Esteban Marino “adoeceu gravemente” e precisou ser substituído. Com a aprovação vascaína, Cataldi – de primeiro nome ignorado pelos jornais da época – seria o juiz.
Otto Glória escalou seu time com Barbosa; Augusto e Clarel; Danilo, Eli e Alfredo; Tesourinha, Ademir, Friança, Maneca e Djair. O Peñarol teve Máspoli; Matías Gonzalez e Romero; Juan Carlos Gonzalez, Obdúlio Varela e Ortuno; Ghiggia, Hobberg, Míguez, Schiaffino e Vidal.
Foi um passeio. Friaça abriu o placar no primeiro tempo. Ademir, mesmo com 39 graus de febre, fez o segundo antes de sair para a entrada de Ipojucan, que fechou o placar. Maneca infernizou Varela, Ghiggia desapareceu em campo.
“A vitória que o Vasco precisava, e o Brasil também”, estampou o Jornal dos Sports, em letras garrafais, em artigo de Mário Filho.
– Eu sou capaz de apostar que os jogadores do Vasco pensaram mais no Brasil do que no Vasco. Em Montevidéu, o Vasco era Brasil – escreveu o jornalista.
Barbosa virou “colosso”; Alfredo “marcou Ghiggia como Bigode deveria tê-lo feito no Maracanã”, lembrando o lateral-esquerdo, outro que não teria dado conta do ponta que anotou o gol do bicampeonato mundial do Uruguai.
Técnico do Brasil na Copa, e comandante vascaíno até meses antes, Flávio Costa enviou um telegrama aos brasileiros para parabenizá-los da vitória. “Um feito glorioso”, disse. Até cartolas rivais se manifestaram. “Consagrou o football brasileiro”, afirmou Carlos Martins da Rocha, do Flamengo. Tanto foi o orgulho de Fábio Carneiro de Mendonça, do Fluminense, que a vitória “deixou a impressão de traduzir feito da própria bandeira tricolor”.
Consagração no Rio
A volta vascaína foi de festa. Houve recepção no aeroporto do Galeão. Barbosa desabafou:
– Nunca em minha vida pisei em campo com tanta disposição. Somente agora quero recordar das maldosas insinuações de após a Copa do Mundo. Fui humilhado.
Havia, ainda, a partida de volta. O jogo estava marcado para o domingo seguinte, dia 15 de abril, no Maracanã. Os uruguaios chegaram ao Rio no meio da semana. Matías Gonzalez, campeão mundial, provocou na chegada:
– No Maracanã vamos desforrar-nos da surra de domingo. Este estádio foi feito para nós.
O confronto, porém, precisou ser adiado ao próximo domingo. Um temporal impediu que ele fosse realizado e a revanche ainda demoraria uma semana. Na quarta-feira seguinte, o Peñarol foi a São Paulo, onde empatou em a 0 a 0 com o Palmeiras.
Em 22 de abril, brasileiros e uruguaios mais uma vez se enfrentaram no Maracanã. Mas Friaça e Ademir enterraram as chances de o Peñarol repetir a frustração de 1950. Outra vitória cruz-maltina, 2 a 0 – bicho de oito mil cruzeiros para cada atleta.
– Quando acabou tudo (a final de 1950), eu pedia muito a Deus que eu jogasse outra vez contra o Uruguai. Terminei jogando, e ganhando pelo Vasco: 3 a 1 (3 a 0, na verdade) em Montevidéu, 2 a 0 aqui. Eu queria ir à forra – declarou Friaça, também no livro “Dossiê 50”.
Mais contido, Mário Filho definiu o feito vascaíno, ainda antes da segunda vitória:
– Enfim, embora reconheçamos que a vitória do Vasco não pôde apagar a derrota sofrida pelo football brasileiro em 16 de julho (de 1950), mesmo porque nada a apagará jamais, o triunfo vascaíno teve grande expressão, em tudo e por tudo, aparecendo ante nossos olhos, como se fora um lenço a enxugar um pouco de nossas lágrimas que ficaram com a Copa do Mundo.
Fonte: GloboEsporte.com