Gandula […] O mesmo que gandulo.
Gandulo […] Garoto. Vadio. Tratante […] (FIGUEIREDO, 2010 [1913], p. 936).
O futebol se apresenta como um dos campos mais favoráveis ao surgimento de mitos e para a “romancialização” de fatos históricos. Nessa direção caminhou a terminologia carioca e brasileira quanto à nomeação dos indivíduos que ficam à beira do gramado nos dias de jogos auxiliando a entrega e a devolução de bolas, os famosos gandulas. No cenário esportivo brasileiro construiu-se a idéia de que o termo surgiu através de um ex-jogador do Club de Regatas Vasco da Gama: Bernardo Gandulla. Nesse 1º de março de 2016, Gandulla completaria 100 anos. Assim, como forma de homenagear tanto a passagem do jogador pelo Clube quanto a essa folclórica página da história vascaína, iremos tratar do surgimento do “gandula”.
Bernardo Gandulla
Data de nascimento: 1º de março de 1916 (Buenos Aires, Argentina)
Data de falecimento: 07 de julho de 1999 (Buenos Aires, Argentina)
De acordo com o mito construído, ao menos em uma das facetas, Gandulla ficaria sempre na reserva e para demonstrar a sua qualidade técnica corria para buscar as bolas que saíam e as repunha em jogo com destreza. Contudo, para surpresa de muitos, a referida expressão era antecessora à vinda do referido jogador para o Vasco e de uso comum no futebol da então Capital Federal. A palavra “gandula” é o feminino de “gandulo”, que significava “garoto”, “vadio” ou “tratante”. No contexto da sociedade carioca do início do século XX, o termo poderia ser utilizado de múltiplas maneiras. Por exemplo, como meio de se referir a pessoas de mau caráter (Correio da Manhã, 1906, p. 02) ou a fatos insignificantes:
Em poucos minutos aquelle trecho de rua ficou, tal como uma praça de guerra. Não havia motivo para tanto. Era um caso “gandula”, vagabundo, sem nenhuma importância. Uma luta entre dois homens, que ficou resolvido atoinha… (A Rua, 03 de maio de 1927, p. 6)
Ainda poderia fazer referência a materiais doados pelo estado aos militares e que depois eram vendidos:
Uma gandula quer dizer, na gíria de quartel, um objecto entregue á praça […] – calça, botinas ou blusa, de que elle se desfaz, para apurar dinheiro (Correio da Manhã, 14 de outubro de 1909, p. 4).
No campo esportivo carioca, desde as primeiras décadas, o termo “gandula” era utilizado para se referir aos jovens (“garotos”) que ficavam à beira do gramado ajudando a repor as bolas para o jogo:
Sujeitava-me então á condição de “gandula”. Nem todos sabem o que significa a palavra “gandula”. Cabe, pois sobre ella, uma ligeira explicação: “gandula” é aquelle garoto que fica atraz do goal, para devolver a bola, quando for atirada fóra do campo, por algum “errado”… (Diario da Noite, 05 de agosto de 1933).
Nesse sentido, se a expressão “gandula” já existia e era aplicada como gíria do futebol carioca, servindo de apelido e nome de clube, muito antes do jogador argentino Gandulla vir para o Vasco, como construiu-se o “mito Gandulla”?
Expliquemos…
No ano de 1939, o Vasco caminhava para completar três anos sem conquistar o título de “Campeão da Cidade” (Campeão Carioca), jejum que seria findado em 1945, através do “Expresso da Vitória”. O clube já possuía São Januário, era uma das maiores instituições esportivas do país e contava com uma grande massa de torcedores e sócios que pressionavam os diretores do Gigante da Colina para melhores resultados. Adotando uma política de contratação de jogadores estrangeiros, os dirigentes vascaínos, encabeçados pelo presidente Pedro Novaes, trouxeram vários atletas uruguaios e argentinos para constituírem a equipe. É nesse cenário que Gandulla aparecer para fazer parte da história do futebol vascaíno e brasileiro.
Por ocasião da Copa Roca de 1939, Gandulla esteve na cidade do Rio de Janeiro fazendo parte da delegação argentina. Embora não tenha atuado na referida competição, pois, era reserva de Moreno, treinou em São Januário e despertou o interesse dos dirigentes vascaínos. Retornado para a Argentina, Gandulla casou-se em 27 de fevereiro de 1939 (A Noite, 28 de fevereiro de 1939, p. 17). Estando apalavrado com o Vasco, logo após contrair matrimônio, embarcou para o Brasil a bordo do vapor “Conte Grande”, junto de outros atletas platinos e do técnico uruguaio Carlos Scarone:
BUENOS AIRES, 28 (U.P.)
Seguiram para o Rio de Janeiro, a bordo do “Conte Grande”, os footballers Dacunto, Gandulla, Emeal, Aguinelli e Della Torre.
Em Montevidéu, embarcarão Villadonica e Carlos Scarone. Este ultimo actuará como technico do Vasco da Gama (1º de março de 1939, p.7).
A onerosa “embaixada platina” do Vasco despertou a atenção e gerou bastante desconfiança nos torcedores e na imprensa.
REFORÇO ARGENTINO PARA O VASCO DA GAMA
Mais tres elementos argentinos vêm de ingressar no Club de Regatas Vasco da Gama. Trata-se dos discutidos players Gandula, Emeal e Dacunto.
Para adquirir esses novos elementos gastou o club cruzmaltino cerca de cem contos de reis. Desse modo será o quadro da camisa preta composto de vários elementos estrangeiros. (Gazeta de Noticias, 08 de março de 1939, p. 14).
O Sr. Pedro Novaes, Presidente do Vasco, ao lado de Gandulla, quando da assinatura do contrato
A Noite, Rio de Janeiro, 07 de março de 1939, p. 8
Para que se tenha uma noção da entrada de jogadores estrangeiros no Gigante da Colina, ao menos nove atletas de fora do país passaram pelo clube no ano de 1939, além dos técnicos uruguaios Carlos Scarone e Ramon Platero (campeão com o Vasco em 1923 e 1924). Foram eles: Agnelli (ARG), Calocero (ARG), Dacunto (ARG), Emeal (ARG), Figliola (URU), Gandulla (ARG), Menutti (ARG), Servetti (URU) e Villadonica (URU).
Noite, Rio de Janeiro, 07 de março de 1939, p. 24
Entretanto, foram as contratações de Bernardo Gandulla, Raul Emeal e José Dacunto, jogadores do Ferrocarril del Oeste/ARG, que movimentaram o futebol carioca. A vinda desses três atletas ficou marcada por um conflito entre o Vasco e o Ferrocarril/ARG. O clube argentino alegou que, por não ter dado o “passe” aos jogadores, eles não poderiam atuar pelo Vasco. Por sua vez, o Gigante da Colina contava com o fato de que esses atletas estrangeiros já tinham os seus contratos vencidos e, portanto, estariam livres para atuarem em qualquer clube. A polêmica se alastrou, envolvendo a imprensa dos dois países, as respectivas entidades nacionais (CBD e AFA) e a própria FIFA. Após meses de disputas fora dos gramados, o que incluiu o campo judiciário dos países envolvidos, os jogadores tiveram as suas situações definitivamente regularizadas e os “passes” custaram mais de 126 mil contos de réis aos cofres vascaínos, uma verdadeira fortuna à época. Os “vascaínos-argentinos” ficariam o ano de 1939 em São Januário.
A despeito da solução extracampo, Gandulla, e também Emeal, eram constantemente escalados. A estreia de Gandulla foi em 23 de abril, diante da equipe do Fluminense. No decorrer do ano, após essa data, o Vasco jogou outras 30 vezes. O jogador argentino jogou nada menos que 29 partidas, atuando como titular da equipe vascaína em quase todas. Nestes 29 jogos, totalizou-se 10 vitórias, 8 empates e 11 derrotas, Gandulla anotou 10 gols.
O Globo Esportivo, Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1939, p. 5
Clique aqui e confira a tabela de jogos disputados por Gandulla.
Em questão de números, a passagem de Gandulla foi regular e suas participações eram inconstantes, sendo destaque em alguns jogos e tendo a sua técnica ressaltada. Mas, se levarmos em conta o esforço para a contratação deste e dos outros dois jogadores argentinos, os resultados foram extremamente abaixo do esperado pelos vascaínos.
O “estardalhaço” da imprensa com a vinda dos estrangeiros, especialmente de Gandulla, que foi catapultado pelos conflitos institucionais na disputa do “passe” dos atletas, contribuiu para que o nome jogador servisse de anedota, ora como “munição” para as críticas da imprensa e ora como elogios. Ao fim e ao cabo possibilitou-se a “romancialização” de um termo já preexistente e o surgimento de um mito. Na citação abaixo, o cronista faz referência ao jogo Vasco 5x 1 América (29/10/1939), em que Gandulla atuou bem e marcou dois gols:
Cuidado, pois, snrs. botafoguenses e rubro-negros, a “ala léro-léro” não é apenas uma miragem…
Os Gandullas sabem fazer goals. E que goals […] (Sport Illustrado, Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1939, p. 3).
No ano seguinte, Gandulla saiu do Vasco para o Boca Juniors, equipe que disputou o “passe” do jogador durante boa parte de 1939. Antes do início do campeonato de 1940, a Liga de Futebol do Rio de Janeiro deliberou sugerindo que os clubes tomassem providência para que os “gandulas” fossem implantados:
Oficialização dos “gandulas” e medidas para melhorar o padrão do futebol brasileiro
Diante do que ficou resolvido na reunião dos técnicos, o senhor João Teixeira de Carvalho, assistente da Liga de Futebol, tomou as seguintes deliberações as quais entrarão logo em vigor:
[…]
- f) – Que se sugira aos clubes filiados, para maior rapidez do jogo, a conveniencia de destacarem, como no tenis, garotos para apanharem as bolas nos fundos dos campos (Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 25 de maio de 1940, p. 12).
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil, os fatos que ocorriam na cidade ecoavam para todo o país. Assim, sendo o Vasco um dos maiores clubes nacionais, suas ações eram notadas pelas demais regiões brasileiras. De certa forma, a “oficialização dos gandulas” acabou influenciando para que surgisse o “mito Gandulla”, baseado no jogador vascaíno que tanto “deu o que falar”, mesmo que se soubesse à época que o jogador argentino não foi o motivo para a nomeação dos auxiliares de reposição de bola no Rio de Janeiro:
“A Gazeta”, de São Paulo, publicou: “Os Gandulas” – A Liga Carioca pretende oficializar os “gandulas”. São os meninos que, na Europa, ficam atrás das metas para apanhar a bola e que aqui tambem foram colocados no Estadio do Pacaembú, quando do “Toneio Relâmpago”. A denominação de “gandula” nasceu das atitudes do jogador argentino do mesmo nome, cuja passagem, pelo Vasco, se tornou notoria por ir apanhar todas as bolas que saiam e, pondo o couro debaixo dos braços, dirigia-se ao árbitro para reclamar qualquer coisa, com ou sem motivo…Esses cariocas…” O confrade paulista está equivocado. O termo “gandula” tem mais de 20 anos de uso no Rio e não foi sugerido por nenhum jogador desse nome. Naturalmente, o colega pretendeu romancear… Sem a menor idéia de imitar os europeus, os cariocas se utilizavam dos “gandulas”, principalmente nos campos antigos, quando eram circundados por muros baixos, para terem de volta a bola, sem grande perda de tempo, sempre que alcançava a rua. Ignoro como nasceu a palavra “grandula”, mas posso garantir não ser exata a origem assinalada pelo citado jornal. Alem disso, o jogador Gandula não se tornou conhecido pela atitude que lhe foi atribuida […] (Diario de Noticias, 30 de maio de 1940, p. 12).
Se não foi através do Vasco que o termo surgiu, foi através deste que ele se nacionalizou. Com o passar do tempo, a expressão “gandula” ultrapassou os limites da cidade do Rio de Janeiro e foi adotado por todo país na esteira da popularidade do Vasco. Hoje, 77 anos após a vinda de Gandulla para o Clube, o jogador é lembrado como aquele que “batizou” os ajudantes de reposição de bola nos jogos. No futebol, a verdade histórica e o mito se confundem, se misturam, e formam a riqueza cultural desse esporte que tanto amamos.
Fontes
- a) Dicionário
FIGUEIREDO, Cândido. Novo Diccionário da Língua Portuguesa. Portugal: Gutemberg Ebook, 2010 [1913]. Disponível em:
. Acessado em: 25 mar 2015.
- b) Jornais e Revistas
A Noite;
A Rua;
Correio da Manhã;
Diariode Noticias;
Gazeta de Noticias;
Jornal do Brasil;
O Imparcial;
O Paiz;
Sport Illustrado;
Texto: Walmer Peres Santana (Historiador)
Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama
Fonte: site do CR Vasco da Gama
Talvez o Historiador que, convenhamos, não é senhor da verdade, por não ser contemporâneo, não tenha compreendido o momento e a forma com que passou a ser utilizado o termo.
O fato de uma palavra ja existir, não quer dizer que ela designa o ato ou um fato novo e esse foi um típico caso em que a giria popular, “batizou” o ato.
A forma curiosa e marcante com que o jogador Gandulla ficava atrás do gol para buscar a bola e repor ao jogo, despertando grande atenção dos espectadores, sim, este pode ter determinado o ato, e a popularização deste ato pelos torcedores, que passaram a chamar aqueles que a Federação determinou que ficassem atrás do gol para repor a bola, exatamente após a passagem do jogador pelo Vasco, comparando a sua popular prática, com certeza pode ser associado e “batizado”, por gíria popular, de Gandulas..
Para mim, com toda informação que levantou, somente confirmou a verdadeira origem popular do “batismo” dos Gandulas, ter sido mesmo do ex-jogador Vascaino.
Prezado Paulo Cesar Guedes, o historiador a qual se refere é o vascaíno que aqui vos escreve. Muito prazer!
Não sou “senhor da verdade”, mas sim, sou historiador, formado pela maior universidade federal desse país, a UFRJ, e mais…sou vascaíno! Todavia, posso dizer algumas verdades, tais quais:
– O Vasco é o 1º Campeão Carioca com jogadores das camadas populares, inclusive, negros;
– O Vasco é o 1º Campeão da América, feito realizado em 1948, de forma invicta;
– O Vasco é, dos atuais 4 grandes clubes cariocas, o único a a ter um estádio construído por conta própria
– O Vasco é o maior clube do mundo (fonte: meu vascainismo)
Ser vascaíno não me faz ser cego. Essa informação que trouxemos a tona, estava lá, perdida, esquecida com o passar das décadas. Nós do Centro de Memória resolvemos resgatá-la com intuito de explicar os fatos e enaltecer a história do Vasco. Isto, pois, é graças a popularidade do Clube que o termo “gandula” se nacionalizou. Resolvemos fazer isso, justamente, para demonstrar o quanto o Vasco está seguro da sua condição de ser um dos clubes esportivos a possuir uma das histórias mais ricas e importantes no mundo.
Sugiro, ao senhor, uma releitura do texto, interprete um pouco melhor. Tenho certeza que, enquanto vascaíno e inteligente, o senhor se permitirá a uma releitura do texto e acredito fará algumas reconsiderações sobre sua opinião inicial.
Sugiro também que não se atente muito ao título de uma replicação da matéria, que foi dado por terceiros, pois este, acaba direcionando mal o olhar do leitor menos atento ao texto em si.
Ademais, é em verdade que vos digo:
“Atenção vascaínos!
Ao vasco nada?
[tudo!]
Então como é que é que é que é?
Casaca!
[…]
Para todos da equipe Casaca, um grande abraço e agradeço a divulgação do trabalho. Agradeço, especialmente, ao VP do Conselho Deliberativo, o Sr. Sergio Frias, por ser um dos primeiros a nos parabenizar pela matéria. Esse entende.
SV,
Walmer Peres
Walmer.
Em primeiro lugar, peço desculpas pelo termo que utilizei inicialmente, porém de forma alguma quis menosprezar ou diminuir o fato de ser historiador, muitíssimo pelo contrario, tenho um apreço muito grande, principalmente quando se trata da história do Vasco, o que me faz um defensor fervoroso de sua exposição de forma mais ampla, num grande espaço dentro de São Januário.
Também adoro nossa História, cheguei a manter contato com o administrador do Centro de Memória da FAB, para obter mais imagens, modelo e utilização do avião doado pelos Vascainos na segunda guerra mundial.
Talvez sim, tenha interpretado mal, devido ao Titulo colocado na matéria, que inclusive levou outras pessoas a achar que queriam nos tirar esse mérito, mas a culpa e desse nosso fervor pelo Clube, como bem disse, que muda o olhar sobre o que lemos.
Mas reconheço que a riqueza de detalhes do seu trabalho que me permitiu, ao final do texto, ter toda certeza que o termo, se popularizou devido ao jogador e ao nosso Vasco.
Novamente, peço desculpas pela péssima interpretação inicial, mas peço somente uma gentileza, conta mais!
Nós Vascainos adoramos ler a nossa História!
Dou uma sugestão, num ano em que o Rio receberá a primeira Olimpíada da América do Sul, vamos contar a história de Adhemar Ferreira da Silva no Vasco e nossos atletas olímpicos de todos os tempos.
Parabéns Walmer
Somente para que entendam o motivo do mal entendido, foi um título da matéria colocado no NetVasco e que foi alterada ok
Excelente texto. Não parem.Parabéns ao autor.
PS. O sentido expresso no texto está bem claro.Não entendendo porque alguns não entendem.
Nelson
Infelizmente houve uma enorme confusão em relação ao texto inicialmente colocado no NetVasco, principalmente, pelo título da matéria, o que levou a uma interpretação equivocada da grande maioria, basta ver os comentários no próprio NetVasco.
Tudo resolvido e compreendido, ou melhor, ficou um gostinho de quero mais para as proximas Histórias contadas pelo Walmer.
Paulo César Guedes.
Você está certo nesse ponto.Os títulos e matérias muitas vezes são confusos e me obriga a procurar a fonte original para dirimir as dúvidas.Quanto aos comentários geralmente é de uma raleza monumental eivada de ódios e preconceitos, muitas vezes de enorme desconhecimento do mínimo necessário. SV.
Gostaria de sugerir uma pauta para uma coluna pelo Casaca sobre a fala do Zico no globo.com :
“Como dirigente do CFZ do Rio, sofri na pele as perseguições de uma Federação Estadual que já tinha o resultado das suas competições antes mesmo do apito inicial das partidas.”